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Sobre o morrer


Tenho terror de ser enganado. Se estiver para morrer, que me digam. Quero tempo para escrever o meu haikai


“NINGUÉM QUER morrer. Mesmo as pessoas que querem chegar ao paraíso. Mas a morte é o destino de todos nós.”(Steve Jobs)
Odeio a ideia de morte repentina, embora todos achem que é a melhor. Discordo. Tremo ao pensar que o jaguar negro possa estar à espreita na próxima esquina. Não quero que seja súbita. Quero tempo para escrever o meu haikai.
Mallarmé tinha o sonho de escrever um livro com uma palavra só. Achei-o louco. Depois compreendi. Para escrever um livro assim, de uma palavra só, seria preciso ter-se tornado sábio, infinitamente sábio. Tão sábio que soubesse qual é a última palavra, aquela que permanece solitária depois que todas as outras se calaram. Mas isso é coisa que só a Morte ensina. Mallarmé certamente era seu discípulo.
O último haikai é isto: o esforço supremo para dizer a beleza simples da vida que se vai. Tenho terror de ser enganado. Se estiver para morrer, que me digam. Se me disserem que ainda me restam dez anos, continuarei a ser tolo, mosca agitada na teia das me-díocres, mesquinhas rotinas do cotidiano. Mas se só me restam seis meses, então tudo se torna repentinamente puro e luminoso. Os não essenciais se despregam do corpo, como escamas inúteis.
A Morte me informa sobre o que realmente importa. Me daria ao luxo de escolher as pessoas com quem conversar. E poderia ficar em silêncio, se o desejasse. Perante a morte tudo é desculpável… Creio que não mais leria prosa. Com algumas exceções: Nietzsche, Camus, Guimarães Rosa. Todos eles foram aprendizes da mesma mestra. E certo que não perderia um segundo com filosofia. E me dedicaria à poesia com uma volúpia que até hoje não me permiti. Porque a poesia pertence ao clima de verdade e encanto que a Morte instaura. E ouviria mais Bach e Beethoven. Além de usar meu tempo no prazer de cuidar do meu jardim…
Curioso que a Morte nada tenha a dizer sobre si mesma. Quem sabe sobre a Morte são os vivos. A Morte, ao contrário, só fala sobre a Vida, e depois do seu olhar tudo fica com aquele ar de “ausência que se demora, uma despedida pronta a cumprir-se” (Cecília Meireles). E ela nos faz sempre a mesma pergunta: “Afinal, que é que você está esperando?” Como dizia o bruxo D. Juan ao seu aprendiz:
“A morte é a única conselheira sábia que temos. Sempre que você sentir que tudo vai de mal a pior e que você está a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua Morte e pergunte-lhe se isso é verdade.
Sua Morte lhe dirá que você está errado. Nada realmente importa fora do seu toque… Sua Morte o encarará e lhe dirá: ‘Ainda não o toquei…'”
E o feiticeiro concluiu: “Um de nós tem de mudar, e rápido. Um de nós tem de aprender que a Morte é caçadora, e está sempre à nossa esquerda. Um de nós tem de aceitar o conselho da Morte e abandonar a maldita mesquinharia que acompanha os homens que vivem suas vidas como se a Morte não os fosse tocar nunca”.
Às vezes ela chega perto demais, o susto é infinito, e até deixa no corpo marcas de sua passagem. Mas se tivermos coragem para a olharmos de frente é certo que ficaremos sábios e a vida ganhará simplicidade e a beleza de um haikai.

 

Rubem Alves

Morreu Rubem Alves

Morreu Rubem Alves… resta chorar. E lembrar do meu amado Rubem. E ser grata por tudo o que me ensinou através de seus livros que amo demais.
Um dia cheguei perto dele. Através de um vidro. Foi o máximo que consegui. Fiquei sonhando que no próximo haveria uma palavra, talvez um aperto de mão… DSCI0166-1

Amor arrebatado que a gente não esquece

Os romances que tocam a alma falam de uma felicidade efêmera, cuja lembrança nos acompanha para sempre. À vida fica reservado o conflito de perder o amor para, veja você, preservá-lo

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Ela lhe deu o livro e disse: “É uma história de amor muito bonita. Mas não quero o fim para nós…” Na capa do livro estava escrito: As Pontes de Madison.

Madison era o nome de uma daquelas cidadezinhas pacatas do interior americano, lugar de criadores de gado, novidades não havia, todas as noites eram a mesma coisa, os homens se reuniam nos bares para beber cerveja e falar sobre touros e vacas ou jogavam boliche com suas mulheres, que durante o dia cuidavam das casas e cozinhavam, e aos domingos a família ia à igreja e cumprimentavam o pastor na saída pelo bom sermão. Todos conheciam todos, todos sabiam de tudo, vida privada não havia e nem segredos e, como gado manso, ninguém se atrevia a pular as cercas porque todos ficariam sabendo.

A cidade era vazia de atrativos além do gado, a não ser algumas pontes cobertas sobre um rio a que os moradores não atribuíam qualquer importância. Eram cobertas como proteção contra as nevascas de inverno que poderiam cobrir as pontes, bloqueando o tráfego dos veículos. Só uns poucos turistas que paravam no lugar as julgavam dignas de serem fotografadas.

A família, pacata como as outras, era composta de marido, mulher e dois filhos. Eles tinham cabeças de criadores de gado, cheiro de criadores de gado, olhos de criadores de gado e sensibilidade de criadores de gado.

A esposa era uma mulher bonita e discreta, de sorriso e olhos tristes. Mas o marido não a via, lotados que estavam com touros e vacas.

Suas rotinas de vida eram iguais às rotinas de todas as outras mulheres. Essa era a sorte comum de todas que, em Madison, haviam se esquecido da arte de sonhar. As portas das gaiolas podiam ficar abertas, mas suas asas tinham desaprendido a arte do vôo.

Marido e filhos tratavam a casa como uma extensão dos currais e havia na cozinha aquela porta de molas que batia no batente produzindo um ruído seco como o de uma porteira sempre que entravam. A mulher já lhes havia pedido vezes sem conta que segurassem a porta para que ela fechasse de mansinho. Mas o pai e os filhos, acostumados à música da porteira, não prestavam atenção. Com o passar do tempo, ela compreendeu que era inútil. A batida seca passou a ser o sinal de que marido e filhos haviam chegado.

Aquele era um dia diferente. Havia excitação na cidade. Os homens se preparavam para levar seus animais para uma exposição de gado numa cidade próxima. As mulheres ficariam sozinhas. Na cidadezinha amiga, elas estariam protegidas.

E assim aconteceu com ela naquele dia em que a porta não bateu…

Era uma tarde parada e calorenta. Nem uma vivalma até onde a vista alcançava. Ela, sozinha na sua casa.

Mas rompendo a mesmice de todos os dias passou pela estrada de terra um estranho guiando um jeep. Estava perdido, enganara-se sobre as estradas que não tinham indicações, procurava alguém que pudesse ajudá-lo a encontrar aquilo que procurava. Era um fotógrafo que procurava as pontes cobertas para escrever um artigo para a Geographic Magazine.

Vendo a mulher que da varanda o observava interrogativa – quem seria? – ele parou defronte da casa. Ele, surpreendido que uma mulher tão bonita estivesse sozinha naquele fim de mundo, se aproxima. É convidado a subir até a varanda – que mal poderia haver nesse gesto de cortesia? Ele estava suado. Que mal haveria que tomassem juntos uma limonada gelada? Quanto tempo fazia que ela não conversava assim com um homem estranho, sozinha?

Foi então que aconteceu. E os dois disseram em silêncio: “Quando te vi amei-te já muito antes…” E assim a noite passou com um amor manso, delicado e apaixonado que nem ela e nem ele jamais experimentaram.

Mas o tempo da felicidade passa rápido. A madrugada chegou. A vida real em breve entraria pela porta: filhos, marido e o barulho seco da porta. Hora da despedida, hora do “nunca mais”.

Mas a paixão não aceita separações. Ela deseja a eternidade: “Que seja eterno embora chama e infinito pra todo o sempre…”

Eles tomam então a decisão de partirem juntos. Ele a esperaria numa determinada esquina. Para ele, seria fácil: solteiro, livre, nada o prendia. Difícil para ela, presa a marido e filhos. E ela pensava na humilhação que sofreriam na tagarelice dos bares e da igreja.

Chovia forte. Ela e o marido se aproximam da esquina combinada, o marido sem suspeitar do sofrimento de paixão assentado ao seu lado. Sinal vermelho. O carro pára. Ele a esperava na esquina, a chuva lhe escorrendo pelo rosto e roupa. Seus olhares se encontram. Ele decidido, esperando. Ela, partida pela dor. A decisão ainda não está feita. Sua mão está crispada sobre a alavanca da maçaneta. Bastaria um movimento da mão, não mais que cinco centímetros. A porta se abriria, ela sairia sob a chuva e iria abraçar aquele que ela amava. A luz verde do semáforo se acende. A porta não se abre. O carro segue para o “nunca mais”…

E esse foi o fim da estória no filme e na vida…

Rubem Alves

Sonhos não se interpretam. É melhor recebê-los como presentes que são, vindos de algum lugar para além da gente. Eles vêm numa revoada, pousam tranquilos e, assim, se deixam conhecer

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Desde menino as borboletas me encantam. E acho que elas gostam de mim. Certa vez, na casa do Brandão, em Pocinhos do Rio Verde, uma borboleta assentou-se no meu rosto e lá ficou tranquila. Não me mexi com medo de assustá-la. Ela ficou tanto tempo no meu rosto que deu tempo para o Brandão ir buscar sua câmera e tirar uma foto.

Penso que borboletas, seres alados, diáfanos e coloridos, devem bem ser emissários dos deuses, anjos que anunciam coisas do amor. Imaginei, então, que aquela borboleta deveria ser um anjo disfarçado que os deuses me enviavam com uma promessa de felicidade.

O imaginário mítico e poético sempre gostou de borboletas. Os gregos, por exemplo, imaginavam a alma como uma borboleta com corpo de menina. E o grande português Fernando Pessoa dedicou-lhe um maravilhoso poema, Eros e Psique.

Cecília Meireles também brincou com elas, num de seus poemas em que colocou uma pequenina borboleta equilibrando a pesadíssima grandeza cósmica:

“No mistério do Sem-Fim

equilibra-se um planeta.

No planeta, um jardim.

No jardim, um canteiro.

No canteiro, uma violeta.

E na violeta, entre o mistério

do Sem-Fim e o planeta,

a asa de uma borboleta.”

Podem imaginar isso, que uma borboleta, com suas levíssimas asas, possa equilibrar um planeta? E numa cena de Sonhos, filme de Akira Kurosawa, há uma impressionante revoada de milhares, milhões de borboletas.

Isso aconteceu faz muitos anos. A cena da borboleta pousada no meu rosto estava em algum lugar de mim no esquecimento. Aí eu sonhei e a cena se tornou viva de novo.

Os sonhos são um mundo mágico. No mundo dos sonhos não há nem antes e nem depois e nem lá e nem aqui. Tempo e espaço se misturam.

Aí, sonhando, ouvi o cantarolar de uma valsinha velha de que ninguém mais se lembra. Era só um cantarolar, sem palavras. Depois de acordar fui ao Google e lá estava ela:

“Certa manhã/

Destas manhãs cheias de luz

Por entre as rosas do jardim/

Eu vi passar

Gentil borboleta/

De asas azuis

E o seu vôo incerto/

Me fez pensar

Que os namorados/

Que passeiam por aí

São borboletas que a voar/

De flor em flor

Procuram daqui/

E procuram dali

Encontrar um novo amor/

Voa minha linda borboleta/

Voa pois a vida é tão boa/

Quando se tem/

Um amor no coração…”

Sonhei com a borboleta que pousara no meu rosto. Mas de repente ela bateu as asas e voou em meio às árvores da mata. Corri atrás, mas ela era mais rápida do que eu.

A cena se alterou. A borboleta estava agora num shopping, voando, voando, e entrou numa joalheria. Fiquei confuso diante de tantas jóias nas vitrines, até que vi a borboleta pousada num fino cordão de ouro. Mas, imaginem, foi só eu tocá-la para que ela se transformasse numa borboleta de vidro, as asas feitas com atraentes pedras coloridas.

Fiquei triste com essa transformação porque eu preferia a borboleta viva, aquela que se assentava no meu rosto. De qualquer maneira, resolvi comprá-la: era uma jóia que eu poderia dar a alguém que se parecesse com a minha borboleta.

Pus a borboleta de pedras coloridas no bolso e me fui. Mas aí aconteceu o que eu não imaginara: como no filme de Kurosawa, milhares e milhares de borboletas começaram a sair do meu bolso e encheram de cores o espaço do shopping. E foi em meio a esse total encantamento onírico que uma das borboletas não voou. Ela se assentou sobre o meu rosto e ali ficou…

Aí eu acordei…

 

Rubem Alves

O ciúme

O apaixonado que desconfia quer manter sob controle até o pensamento do ser amado. Diante de tamanha impossibilidade, ele se tortura e quer o outro cerceado. É a antítese do amor

 

 

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Ela tinha a beleza tranqüila da maturidade. Bastava vê-la para adivinhar como ela teria sido. Ah! Com certeza provocara muitos suspiros de amor. De hábitos domésticos e simples, um dos seus prazeres era assentar-se numa poltrona e entrar na bolha que a leitura cria. Quem lê está num outro mundo, muito longe.

O seu marido a observava de longe. Olhos que observam são olhos que olham quando o outro não está olhando. Olhos que observam são olhos de felino que seguem a presa. Seu olhar era olhar de apaixonado que desconfia, olhar de ciúme. Os olhos do ciumento vigiam. Vigiam gestos, movimentos, horas. Vigiam porque as modulações silenciosas e distraídas no rosto da pessoa amada podem conter revelações sobre aquilo que ela está pensando. O ciumento suspeita que a mulher amada lhe esconde algo. Ele olha na esperança de ver o escondido, de entrar dentro do segredo do outro. O ciumento detesta os pensamentos. Por mais que os vigie, eles estão além da sua vigilância.

Tem aquela modinha de Carlos Gomes, Quem Sabe? É um monólogo de um apaixonado. Ele sofre. Sofre porque a amada está longe e ele não sabe o que ela está pensando. “Tão longe de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento?” O seu desejo era saber se os pensamentos da amada pensavam nele. Ele pergunta porque não sabe e tem medo de saber o que ela estará pensando. Pergunta porque não confia. Minha amada, por favor, me diga “se ainda é meu teu pensamento…”.

Há os ciúmes mansos que todos sentem e só doem um pouquinho. E há os ciúmes que são um tormento e que freqüentemente terminam em tragédia. Todo ciúme, manso ou atormentado, gostaria de ser dono da mulher amada, inclusive dos seus pensamentos. Ele quer conhecê-la por dentro e por fora para certificar-se da sua posse. Nos momentos de êxtase amoroso, esse tormento se resolve e o ciumento se acalma. Mas a sua calma é efêmera. Dura o mesmo tempo do ato sexual. Termina com o orgasmo. Passado o êxtase a dúvida volta. E, com ela, o tormento.

Ele a vigiava, silenciosamente o felino a vigiava. E a sua vigilância se exacerbava quando ela sorria ou ria. Como explicar esse sorriso se ele, o seu marido, não estava dentro do livro? Ela não precisava dele para ser feliz. Mergulhada no seu livro, o seu marido não existia. E isso não é o anúncio de uma infidelidade possível? Ter prazer com algo que não era ele, o seu marido… O prazer acontecia na ausência dele. A infidelidade com o livro anunciava a possibilidade de grandes infidelidades. E isso o torturava. Tortura que não o abandonava nem nos momentos de intimidade prazerosa.

Um ciumento não tolera a liberdade

Mas aí algo aconteceu que o tranqüilizou. Sua esposa adoeceu. Uma mulher adoentada é um pássaro de asas quebradas que não sonha e nem poderia jamais voar. Um pássaro de asas quebradas não planeja vôos proibidos. Pássaros de asas quebradas são confiáveis.

Isso o acalmou. Ele ficou doce. Até os momentos de intimidade ficaram leves: seu efêmero sentimento de posse se transformou num tranqüilo sentimento de eternidade. Agora ela era sua, para sempre.

Suspeito que os crimes por ciúme não têm o propósito primeiro de matar a mulher amada. O seu propósito, ao contrário, é garantir que ela não será de nenhum outro.

Mas há também um ciúme que dói de mansinho, sofrimento no coração de todos os apaixonados.

A cena: o marido e a mulher chegam a uma festa. Muita gente conhecida e desconhecida, música, risos, olhares… Marido e mulher se separam para se socializarem com outras pessoas. Numa roda, o marido conversa e ri, distraído. De repente, ele vira o seu rosto e vê a sua mulher em outro grupo. Ela está de costas, vestido branco, costas nuas. Como ela é bonita! Ele a ama e pensa que outros homens já olharam para ela com olhares de admiração e desejo. Ela se tornou o centro das atenções da sua roda. Todos os homens se esforçam por lançar o seu charme. Ela ri. De costas para o marido é como se ele não existisse. Como aconteceu com a mulher que lia o livro. Ri por causa dos outros que a cercam, grupo do qual o marido está ausente. E ele pensa que, naquele momento, a felicidade da sua mulher acontece sem que ele dela participe. E lhe dói saber que ela pode ser feliz sem ele, ainda que num breve momento.

Sofre em silêncio, sem demonstrar. E nem fará cobranças quando voltarem para a casa. Afinal de contas, ele é um homem educado que compreende os movimentos da alma.

O ciúme nasce quando se toma consciência de que a pessoa amada é livre. Ela é como um pássaro pousado no ombro. Nada o prende. Poderá voar para longe quando quiser.

Alguns ciumentos tolos acham que o casamento é gaiola que garantirá a posse plena do pássaro. Mas nada garante a posse do pássaro. O pássaro voa, o pássaro volta… Mas pode ser mesmo que ele voe e não volte…

Rubem Alves

o-pequeno-principe

 

Meu filho Marcos, pai da Rafaela, me disse que ela gosta de ver as estrelas, que eles dois, no escuro da noite, se deitam na rede e ficam conversando sobre elas…

Tem de ser no escuro da noite. É no escuro que a gente vê melhor o seu brilho. Faça uma brincadeira. Na sala, iluminada com lâmpadas elétricas, acenda uma vela.

A luz da vela não vai fazer diferença alguma. Nem vai ser notada. Agora, apague as luzes e acenda uma vela… Ah! Como é linda a luz da vela! A vela se torna o centro da sala, a coisa mais importante. E a gente cuida para que um sopro de vento não a apague! Assim são as estrelas. Nas cidades iluminadas pelas lâmpadas elétricas, o céu fica embaçado, a luz das estrelas fica fraquinha e a maioria desaparece.

Agora imagine: nos tempos de antigamente, quando não havia luz elétrica e as noites eram realmente escuras! O escuro é ruim. Dá medo. Os olhos precisam de luz. Sem luz, ficamos cegos. Naquele escuro enorme, quando não se podiam ver as coisas da Terra por causa da escuridão, era possível ver os céus, iluminados por milhares, milhões de estrelas, piscando… A luz das estrelas traz alegria! Mário Quintana, um poeta velho com alma de criança, amava as estrelas e disse: “(•••) que tristes seriam as noites sem a luz mágica das estrelas!”.

Quando eu era menino, gostava de ficar deitado na grama, barriga para o ar, olhando as nuvens. E imaginava com o que elas se pareciam: um pato, um peixe, uma cafeteira, um jacaré, uma abóbora, um dragão… Essa é uma brincadeira divertida que todo mundo faz. Pois os homens que gostavam de olhar para as estrelas, há milhares de anos, faziam coisa parecida. Você já deve ter feito um desenho assim: uma folha de papel com vários pontos; a gente vai ligando os pontos com um risco e, de repente, aparece uma coisa: casa, árvore, sapato… Acho que essa brincadeira foi inspirada naquilo que os antigos faziam com as estrelas. Pois os céus, durante a noite, não são uma imensa folha de papel preto cheia de pontinhos luminosos? Eles ligavam as estrelas com riscos imaginários e diziam: é um escorpião, é um caçador com dois cães, é uma cruz, é um peixe, é uma águia! É isso que tem o nome de constelação.

Constelação é uma palavra formada por duas outras, do latim. Latim é uma língua muito antiga da qual nasceram o italiano, o espanhol, o francês, o português. A palavra constelação é formada pela junção (junção quer dizer ligação, duas ou mais coisas que se encontram) de con, que quer dizer junto, e stella, que quer dizer estrela.

Uma menina que se chama Stela é estrela. Se for Stela Marisé estrelado mar… Constelação, assim, quer dizer ajuntamento de estrelas. Aqui no Brasil a constelação mais conhecida é o Cruzeiro do Sul. Se você olhar para o Cruzeiro do Sul às 7 da noite, às 9 e às 11, você verá que ele muda de posição. Ele vai girando em torno de um ponto. Esse ponto é o sul. A outra, mais famosa, é o Óríon, aquela que tem as Três Manas no meio. Órion, na mitologia dos gregos, era o nome de um caçador, o mais bonito de todos. As Três Marias são o seu cinturão. Todo caçador tem de ter um cinturão! E todo caçador tem também de ter cães de caça. Pois o Órion tem, ao seu lado, as constelações chamadas Cão Maior e Cão Menor. Na constelação Cão Maior se encontra a estrela de maior brilho no céu, chamada Sírius. E há a constelação chamada Plêiades. A gente quase não vê. Mas com um binóculo comum aparecem as estrelas, nem sei quantas, lindas. Cecília Meireles, talvez a maior das nossas poetisas, fala delas num dos seus poemas: “Vimos as Plêiades. Vemos agora a Estrela Polar. Muitas velas. Muitos remos. Curta vida. Longo mar…”.

A Cecília, logo após falar das estrelas, parece que muda de assunto. Começa a falar sobre barcos a vela. Mas o que é que barcos a vela do mar têm a ver com as estrelas do céu? Têm muito a ver. Navegando perto da costa, o navegador não se perde. Mas, e quando ele está no meio do mar, longe da terra? Água por todos os lados, nenhum sinal de terra no horizonte! Que rumo seguir? É tão fácil navegar na direção errada! Pois os navegadores descobriram que, faltando a terra para se orientaram, navegariam na direção certa se olhassem para os céus. Aquela oração que vocês fazem e que diz “assim na terra como no céu” vale para os navegadores: as direções da terra estão mostradas nas estrelas do céu. Que coisa mais interessante essa, que olhando para as estrelas distantes podemos saber onde estamos e em que direção estamos navegando!

O Sol também é uma estrela. É uma estrela que está muito próxima da Terra e, por isso, aparece tão grande! E sua luz muito forte não permite que as outras estrelas sejam vistas durante o dia. Mas há uma situação em que a luz do Sol se apaga durante o dia e o dia vira noite! Você sabe qual é? Eu disse que a luz do Sol se apaga.

Não é bem assim. Vou explicar. A luz do Sol está batendo nos seus olhos. Incomoda. Que é que você faz? Coloca a mão entre o Sol e os seus olhos. Assim, seus olhos ficam na sombra e você não vê a luz do Sol. Pois coisa semelhante acontece quando a Lua fica entre o Sol e a Terra. A Lua tampa a luz do Sol. E a Terra, durante o dia, fica na sombra. E o dia vira noite! Quando isso acontece, os céus ficam negros e podemos ver as estrelas que normalmente não vemos, por causa da luz do Sol.

Eu acho que a Rafaela pode se transformar numa astrônoma! Uma astrônoma é uma mulher cuja profissão é estudar os céus! vou contar uma coisa sobre a trisavô da Rafaela. Eu sou avô da Rafaela, pai do seu pai. Minha mãe era sua bisavó. E a mãe da sua bisavó era sua trisavô. Sua trisavó era minha avó… Não sei o ano em que ela nasceu. Mas imagino que deve ter sido por volta de 1870… Pois ela, que se chamava Delminda, era uma mulher diferente. Era doida por astronomia! Conhecia o nome das estrelas e tinha mesmo uma luneta para ver os céus. Eu mesmo usei a luneta da trisavó da minha neta para ver estrelas… Pois aconteceu durante a sua vida – minha mãe era menina – uma coisa extraordinária: o cometa Halley passou pertinho da Terra! Cometa…

Há uma variedade imensa de “coisas” no céu: estrelas dos mais variados tipos e tamanhos, planetas, satélites, asteroides, cometas e uma infinidade de outros corpos celestes… Um cometa é um corpo celeste que aparece de tempos em tempos com uma cauda. Minha mãe, que era criança quando isso aconteceu (1910), me disse que o cometa aparecia enorme no céu, muito maior do que a Lua cheia, com uma luminosa cauda brilhante que fazia a noite virar dia!

Sim, pode ser que a Rafinha venha a ser uma astrônoma. Ou pode ser que ela venha a ser uma poetisa. Um astrônomo examina as estrelas, tira fotografias, estuda os seus caminhos e a sua vida. Vida, sim. As estrelas, como nós, nascem e morrem! Mas os poetas, diferentemente dos astrônomos, ouvem as estrelas! Não são todos os que podem ouvir as estrelas. Para ouvir as estrelas é preciso tranquilidade. Os adultos, coitados, não podem ouvir a voz das estrelas. Eles são seres perturbados, agitados, não têm tempo, só ouvem barulhos e os programas de televisão. Para ouvir a voz das estrelas é preciso ser poeta ou… criança. Quem ouve as estrelas fica tranquilo. Eu me lembro, faz muitos anos… Eu estava angustiado com um problema e não podia dormir. Cansado de rolar na cama, levantei-me e fui para a janela do apartamento. A cidade estava em silêncio. Olhei para as estrelas que brilhavam. Já tinha visto o seu brilho muitas e muitas vezes. Aí elas começaram a falar: “Por que você está aflito? Nós estamos aqui brilhando, faz bilhões de anos. E continuaremos a brilhar por outros bilhões de anos”. Compreendi que eu estava aflito porque dava muita importância a mim mesmo. Mas quem pode se considerar importante olhando para as estrelas? Nossa vida é tão curta! Voltei para a cama e dormi, embalado pela luz das estrelas.

Muitos há que acham que as estrelas não falam. Elas tocam música. O universo é uma orquestra regida por Deus, compositor. Houve mesmo um astrônomo chamado Kepler que chegou ao ponto de escrever as estrelas como se fossem notas numa partitura musical. Ele afirmava haver ouvido a música que Deus estava tocando! Um compositor de nome Holst escreveu um poema sinfônico chamado “Os planetas”. Mercúrio, Vênus, Marte, Terra, Saturno, Júpiter, cada um toca uma música que é só sua. Mas o poeta Fernando Pessoa, ao contrário, ao contemplar as estrelas, não ouvia música. Ele tinha dó:

Tenho dó das estrelas Luzindo há tanto tempo, Há tanto tempo… Tenho dó das estrelas….

Peça ao seu pai para ler para você a estória do Pequeno Príncipe. O Pequeno Príncipe morava num asteroide. Um asteroide é um planeta bem pequeno, que gira em torno do Sol. O Pequeno Príncipe morava sozinho no seu asteroide com uma rosa, um carneiro e uma árvore gigantesca chamada Baobá. Aí o Pequeno Príncipe resolveu fazer uma viagem e, de asteroide em asteroide (em cada asteroide morava um tipo divertido: o rei, o acendedor de lampiões, o vaidoso, o geógrafo, o astrônomo…), chegou à Terra… Na Terra, ele ficou amigo de um homem e de uma raposa. Mas chegou a hora da despedida. Na Terra, tudo se despede… Ele não gostava de despedidas, mas era preciso voltar para casa, para sua rosa, o seu carneiro e o Baobá, lá no asteroide, na fundura escura do céu. E assim aconteceu. O principezinho se foi. E o seu amigo que ficara aqui na Terra, sozinho, olhava para os céus nas noites estreladas e se perguntava: “Em que pontinho de luz ele estará?”.

 

Rubem Alves

 

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O tempo opera cruéis transformações sobre o corpo. Um dos livros mais sábios jamais escritos, o Tão Te Ching, assim as descreve: “Um homem, ao nascer, é macio e frágil. Ao morrer, ele é duro e rígido. As plantas verdes são macias e cheias de seiva. Na sua morte, elas estão murchas e secas. Portanto, o rígido e o que não se curva são discípulos de vida”.

Esse processo inexorável de endurecimento manifesta-se primeiramente nos olhos. A morte tem especial predileção pelo olhar. Bachelard sabia disso e se perguntava:

“Sim, a luz de um olhar, para onde ela vai quando a morte coloca seu dedo frio sobre os olhos de um morto?”.

É nos olhos que ela injeta o seu sêmen…

Escher. Não sei se esse nome lhe é familiar. É melhor que seja porque, no dia do Juízo Final, Deus vai lhe perguntar sobre ele, e não vai gostar se você disser que

nunca ouviu esse nome. Assim, trate de conhecê-lo antes de morrer.

Os desenhos de Escher se encontram em qualquer livraria boa. Não são baratos. Se forem caros demais, veja na livraria mesmo. Freqüentar livrarias para brincar de

ver figuras e ler é uma felicidade gratuita. Já passou pela sua cabeça que livrarias são playcenters? Brincam as ideias com as palavras, brincam os olhos com as imagens, brinca o nariz com os cheiros cheios de memórias que moram nos livros, brinca o tato, os dedos acariciando o papel liso como se fosse a pele do corpo amado…

Mas, se você tem o dinheiro, vale a pena comprar. Você gastou dinheiro comprando óculos para ver melhor. Gaste dinheiro agora dando aos seus olhos o que ver. Caso contrário, você será como o tolo que compra panelas e não compra comida. As gravuras de Escher são comida para os olhos: fazem mais bem aos olhos do que os melhores colírios…

Os desenhos de Escher são koans, desafios ao olhar, terremoto da inteligência. Uma das suas gravuras mais terríveis tem o nome de Olho: é só um olho e, dentro dele, refletida, a imagem da morte.

Comparando o dito de Tão Te Cbing com a gravura de Escher, concluo que aquele é um olho adulto, pois é no corpo endurecido de adultos que a morte mora.

O remédio, segundo o mesmo livro, é tornarmo-nos “de novo como crianças pequenas”. Se isso lhe acontecer, você não voltará a ser criança pequena de novo, como pensou o tolo Nicodemus quando Jesus lhe disse a mesma coisa; você ficará como criança pequena. Ficar como criança pequena é ficar sábio. Diz o Tão Te Ching que o segredo do sábio – a razão por que todos olham para ele e o escutam – é que “ele se comporta como uma criança pequena”. O sábio é um adulto com olhos de criança. Os olhos,diferentemente do resto do corpo, preservam para sempre a propriedade mágica de rejuvenescimento.

Sua cabeça de cientista provavelmente discordará. Você dirá que somente os adultos vêem direito. Os adultos passaram muitos anos nas escolas, seus olhos fizeram caminhadas infinitas pelos livros. Os seus olhos sabem muito, estão cheios. Por isso, devem ver melhor.

Mas esse é, precisamente, o problema. Quando um balde está cheio de água, não é possível colocar mais água dentro dele. Os olhos dos adultos são como balde cheio, como um espelho no qual se colou uma infinidade de adesivos coloridos. O quadro ficou bonito. Mas o espelho se foi. O espelho parou de ver. Ficou cego.

Os olhos das crianças são baldes vazios. Vazios de saber. Prontos para ver. Querem ter tudo. Tudo cabe dentro deles. Minhocas, sementinhas, bichinhos, figuras, colheres, pentes, folhas, bolinhas, colares, botões. Os olhos de Camila, minha neta, se encantam com as coisas. Para eles, tudo é fantástico, espantoso, maravilhoso, incrível, assombroso.

Os olhos das crianças gozam da capacidade de ter o “pasmo essencial” do recém-nascido que abre seus olhos pela primeira vez. A cada momento eles se sentem nascidos de novo para a eterna novidade do mundo.

Walt Whitman diz que, ao começar os seus estudos, o que mais o agradou foi o dom de ver. Ficava encantado com as formas infinitas das coisas, com os mais pequenos insetos ou animais: “[o passo inicial] me assustou tanto, e me agradou tanto, que não foi fácil para mim passar, e não foi fácil seguir adiante, pois eu teria querido ficar ali flanando o tempo todo, cantando aquilo em cânticos extasiados”.

Os olhos dos adultos, havendo se enchido de saber, e havendo, portanto, perdido a capacidade de ver das crianças, olham sem nada ver (daí o seu tédio crônico) e ficam procurando cura para sua monotonia de ver em experiências místicas esquisitas, em visões de outros mundos, ou em experiências psicodélicas multicoloridas.

Pois eu lhe garanto que não existe visão de outro mundo que se compare, em beleza, à asa de uma borboleta. Quem o disse foi Cecília Meireles, poetisa. Os poetas são religiosos que não necessitam de religião porque os assombros deste mundo maravilhoso lhes são suficientes. Foi assim que ela pintou a cosmologia poética que seus olhos viam:

No mistério do Sem-Fim,

equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim, e, no jardim, um canteiro-, e no canteiro, uma violeta,

e sobre ela, o dia inteiro,

entre o planeta e o Sem-Fim,

a asa de uma borboleta.

 

“Um homem, ao nascer, é macio e frágil. Ao morrer, ele é duro e rígido.”

O que o sábio chinês disse ao corpo inteiro, o poeta espanhol Antônio Machado disse aos olhos:

Olhos que para a luz se abriram

um dia para, depois,

cegos retornar a terra,

fartos de olhar sem ver!

 

 

As contas de vidro e o fio de nylon

 

Confesso a minha impiedade: não consigo amar a Deus. Não consigo amar nada em abstrato. Preciso de um rosto, uma voz, de um olhar, de um toque de mão. Amo com os meus sentidos. Mas Deus, eu nunca vi. Não sei como ele é. Por isso não consigo amá-lo. Meu mestre Alberto Caeiro está pior do que eu, pois chega ao ponto de afirmar que nem mesmo pensar em Deus ele consegue: “Pensar em Deus é desobedecer a Deus, porque Deus quis que não o conhecêssemos, por isso se nos não mostrou”.

O amor é o melhor tônico de memória. Quando o nome da coisa amada é pronunciado, ela logo ressuscita dos mortos e aparece viva em nossa imaginação. E o corpo se enche de saudades. A saudade é o sintoma de que uma coisa amada perdida saiu do túmulo. Mas o nome de Deus não faz nada com a minha memória. Não provoca ressurreições.

Não sinto saudade de coisa alguma. O corpo não se comove.

Gosto do poema de Brecht intitulado “Prazeres”. Sem rimas ou métrica, é uma simples enumeração de algumas das coisas que o faziam feliz.

 

Vidros coloridos de um vitral.

A primeira olhada pela janela de manhã.

O velho livro de novo encontrado.

Rostos entusiasmados.

Neve, a mudança das estações.

O jornal.

O cão.

Tomar banho.

Nadar.

Velha música.

Sapato confortável.

Perceber.

Nova música.

Escrever, plantar.

Viajar.

Cantar.

Ser amigo.

 

 

O meu “Prazeres” seria parecido.

Acordar, pensar na faca, no queijo e na fome.

Caminhar,

os olhos passeando pelas árvores,

pela grama molhada de chuva,

pelos pássaros.

O Sol acabado de nascer.

Suco de laranja, café fumegante,

pão com manteiga, ovo quente.

Os pensamentos que me vêm enquanto caminho.

Planejar o meu jardim Zen.

Música.

A Mariana e a Camila.

O outro neto ou neta, ainda sem nome.

Chá gelado com limão.

Memórias.

Livros.

O Calvin.

 

Basta escrever o seu “Prazeres”. Quando os olhos ficam atentos às pequenas alegrias é fácil ser poeta.

Hermann Hesse escreveu um livro intitulado O jogo das contas de vidro. É a estória de uma ordem monástica na qual os seus membros, em vez de gastarem seu tempo com ladainhas e exercícios semelhantes, se dedicavam a um jogo que era jogado com contas de vidro coloridas. Eles sabiam que os deuses preferem a beleza às monótonas repetições sem sentido. O livro não descreve os detalhes do jogo. Mas eu sei do que se tratava. Enquanto escrevo, ouço a Sonata no 27, op. 90, de Beethoven. É linda.

As contas de vidro coloridas de Beethoven, nessa sonata, são as notas do piano.

Vitrais também são jogos de contas de vidro. Foi na poesia de uma poetisa minha amiga, ex-aluna, Maria Antônia de Oliveira, no livro Cerigüela, que pela primeira vez vi a vida como um vitral.

 

 

A vida se retrata no tempo

formando um vitral,

de desenho sempre incompleto

de cores variadas, brilhantes, quando passa o Sol. Pedradas ao acaso acontece

de partir pedaços ficando buracos,

irreversíveis. Os cacos se perdem por aí.

Às vezes eu encontro cacos de vida que foram meus, que foram vivos.

Examino-os atentamente tentando lembrar de que resto faziam parte. Já achei caco pequeno e amarelinho

que ressuscitou de mentira, um velho amigo.

Achei outro pontudo e azul, que trouxe em nuvens

um beijo antigo,

Houve um caco vermelho

que muito me fez chorar,

sem que eu lembrasse

de onde me pertencera.

 

 

 

Esses cacos de vitral, essas contas de vidro coloridas isso meu corpo e minha alma amam, para todo o sempre. O amor não se conforma com o veredicto do tempo – os cacos do cristal se perdendo dentro do mar, as contas de vidro colorido afundando para sempre no rio do tempo.

Quero que tudo que eu amei e perdi me seja devolvido. Todas essas coisas moram nesse imenso buraco dolorido da minha alma que se chama saudade.

Para isso eu preciso de Deus, para me curar da saudade. Dizem que o remédio está no esquecimento. Mas isso é o que menos deseja aquele que ama. Conta-se de um homem que amava apaixonadamente uma mulher que a morte levou. Desesperado, apelou para os deuses, pedindo que usassem seu poder para lhe devolver a mulher que tanto amava.

Compadecidos, eles lhe disseram que devolver sua amada não podiam. Nem eles tinham poder sobre a morte. Mas poderiam curar seu sofrimento, fazendo-o esquecer-se dela. Ao que ele respondeu: “Tudo, menos isso. Pois é o meu sofrimento o único poder que a mantém viva, ao meu lado!”.

Também eu não quero que os deuses me curem, pelo esquecimento. Quero antes que eles me devolvam minhas contas de vidro. E é assim que eu imagino Deus: como um fino fio de nylon, invisível, que procura minhas contas de vidro no fundo do rio e as devolve a mim, como um colar. Não por ele mesmo (sobre quem nada sei), mas por aquilo que ele faz com minhas contas…

Quero Deus como um artista que cata os cacos do meu vitral, partido por pedradas ao acaso, e os coloca de novo na janela da catedral, para que os raios de Sol de novo por eles passem.

O que eu quero é um Deus que jogue o jogo das contas de vidro, sendo eu uma das contas coloridas do seu jogo…

 

Rubem Alves 

 

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Sou psicanalista. E tenho fé. E não tenho de cometer nenhum suicídio intelectual para que elas convivam dentro de mim.

A psicanálise diz em prosa aquilo que a poesia e a literatura souberam sempre: “somos feitos da mesma matéria dos nossos sonhos” (Shakespeare). Essa afirmação, se interpretada cientificamente, é um non-sense. Pois ela diz que o nosso corpo é feito com uma mistura impossível de realidade e irrealidade. Realidade: ossos, músculos,sangue, cérebro, neurônios, hormônios – entidades que moram no mundo da ciência. Mas sonhos? Sonhos são irrealidades. Não possuem substância. São imagens que aparecem fortuitamente na mente para logo desaparecerem, faltando-lhes as qualidades cartesianas de clareza e distinção. Não é por acaso que a ciência os tenha eliminado do seu discurso, com a consequente redução da poesia e da literatura à categoria de “diversões”, brinquedos mentais vazios de qualquer realidade. Um cientista, como cientista, jamais iria à literatura para aprender sobre a realidade. Literatura é relax, uma alternativa aos tranquilizantes… A frase de Shakespeare, na verdade, contém uma nova filosofia herética que afirma que “aquilo que não é, é”. E a prova de que “o que não é,é” está em que o corpo chora, ri, ama, luta, produz arte, movido por essa irrealidade. Parafraseando Sartre: “O nada é ser”.

A psicanálise, assim, antes de ser uma prática terapêutica, é uma metafísica. E o seu poder terapêutico se deve ao fato de que ela trata as coisas que não foram não são e não serão como se fossem. Tudo começou nos sonhos: “A interpretação dos sonhos é o caminho áureo para o conhecimento do inconsciente”. O grande salto filosófico aconteceu quando Freud se deu conta de que os traumas que se encontravam na origem dos sofrimentos dos seus pacientes não pertenciam ao mundo que a ciência define como realidade. Não haviam acontecido de fato. Eram fantasias. Mesmo quando havia um núcleo de realidade na memória desses traumas, seu poder patogênico se encontrava numa ficção, a forma literária que a mente lhes dava.

Mas isso não era novidade para os místicos e os poetas. Eles sempre o souberam. Está escrito no texto sagrado que o corpo é o Verbo encarnado. D. Miguel de Unamuno, filósofo e místico espanhol (Guimarães Rosa, perguntado sobre o que ele pensava dos filósofos, respondeu: “A filosofia é a maldição do idioma. Mata a poesia desde que não venha de Kierkegaard ou Unamuno, mas então é metafísica” [Arte em Revista, ano I, na 2. São Paulo: Centro de Estudos de Arte Contemporânea, p. 7]), num humoroso diálogo fictício com um materialista que chamava as produções poéticas de “sardinhas fritas”, conclui o diálogo impossível retornando à sua solidão e repetindo para si mesmo:

Unamuno

Recuerda, pues, o suena tu, alma mia

– Ia fantasia es tu sustância eterna -,

Io que no fué;

con tus figuraciones hazte fuerte,

que eso es vivir, y Io dernás es muerte.

(Miguel de Unamuno, “Conversación segunda”,

Ensayos. Madri: Aguilar Ediciones, 1951, p. 554)

Fernando Pessoa também se movia no mundo dás coisas que não existem:

 

O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas que nunca existirão…

São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor…

(Fernando Pessoa, Obra poética. Rio de Janeiro: Nova

Aguilar, 1990, p. 169)

Manoel de Barros, esse maravilhoso poeta mato-grossense, especialista em aforismos, também faz a sua escritura sobre o que não existe: “As coisas que não existem são mais bonitas…” (Livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 7).

 

 

E Paul Valèry: “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?”. Então o que não existe ajuda? Se ajuda, tem poder. Se tem poder, é real. Será que Deus pertenceria a essa classe de

não existentes que existem?

 

Riobaldo diria que sim: “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver”

(Guimarães Rosa, Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1978, p. 49).

 

Esse “mas” parece introduzir uma diferença entre a “realidade” de Deus e a “realidade” do demônio. Mas basta ler o texto com atenção para perceber que tanto Deus quanto o demônio não precisam existir para haver; existem mesmo quando não há. O que nos conduz ao aforismo por meio do qual Guimarães Rosa resumiu essa metafísica insólita:

 

“Tudo é real porque tudo é inventado”.

Os artistas fazem amor com o que não existe. Trabalham para dar forma sensível a esse objeto – sabendo que ele sempre lhes escapará.

 

 

Por mais rosas e lírios que me dês

eu nunca acharei que a vida é bastante.

Faltar-me-á sempre qualquer coisa,

sobrar-me-á sempre o que desejar…

(Fernando Pessoa, Obra poética. Rio de Janeiro: Nova

Aguilar, 1990, p. 406)

A psicanálise, nos seus primórdios, participava da metafísica científica dominante. Considerava os sonhos (não existentes) como “efeitos” de “causas” históricas e biográficas, eventos realmente acontecidos. O processo interpretativo tinha por objetivo encontrar as raízes materiais das quais surgiam os sintomas que afloravam no corpo e na mente de pessoas perturbadas. Comentando Roheim (Magic and schizophreniã), Norman O. Brown diz o seguinte:

 

A psicanálise se iniciou como um avanço a mais da objetividade científica civilizada; expor os resíduos de participação primitiva, eliminá-los; estudar o mundo dos sonhos, da magia primitiva, da loucura. Mas o resultado da psicanálise foi a descoberta de que a magia e a loucura estão em todo lugar, e que os sonhos são aquilo de que somos feitos.

 

(Norman O. Brown, Love’sbody. Nova York: Random House, 1966, p. 154)

Assim, estamos destinados a viver fazendo amor com o que não existe. É impossível amar uma fórmula de física. Mas um poema, uma canção, um raio de Sol refletido numa gota d’água – isso nos comove. Amamos uma pessoa não por aquilo que ela é, mas pelo manto de fantasia com que a cobrimos.

Ludwig Feuerbach, antes de Freud, no seu livro A essência do cristianismo (que deveria ser leitura obrigatória para todo psicanalista), disse o seguinte:

 

 

A religião é um sonho da mente humana. (…) Vemos as coisas reais no fascinante esplendor da imaginação e do capricho… O homem – esse é o mistério da religião – projeta o seu ser na objetividade e, a seguir, faz-se objeto dessa imagem projetada de si mesmo, agora transformada em sujeito. (Ludwig Feuerbach, The essence of christianity. Nova York: Harper, 1957, pp. xxxix e 29-30)

 

Segundo Feuerbach – creio que Freud concordaria com ele -, o fenômeno objetivo denominado religião se deve a um mecanismo psicológico: o homem toma a sua essência (essa é a palavra usada por ele) e a projeta para fora, tendo o universo como tela. Assim, aquilo que era “sonho” é transformado numa realidade objetiva exterior, independente do homem, a qual se volta sobre ele e o domina. Essa é a essência da idolatria: a transformação do sonho em realidade. Os deuses são ídolos. Espero que as pessoas religiosas concordem comigo em que essa crítica está presente nos textos proféticos do Antigo Testamento. Entendo que toda a crítica freudiana da religião se refere a esse mecanismo de projeção e a seus resultados institucionais.

Eu me lembro a primeira vez que fui ao cinema. Menino, sete anos, sul de Minas. Terminado o filme, fiquei olhando para uma porta que havia ao lado da tela, esperando a saída dos artistas… Eu não sabia o que era “projeção”! As religiões são assim: pensam que as projeções que a alma faz sobre a tela da imaginação são coisas objetivas,

lá fora. Contra essa fé religiosa, a crítica freudiana é implacável. Pela simples razão de que a existência das projeções se dissolve sob a análise dos mecanismos mentais. A religião, assim entendida, não passa de uma ilusão.

Mas haverá outra forma de entender a fé? Uma fé que não seja crença nos seres que a religião afirma existir?

 

Uma fé que não necessite de ídolos?

Uma fé que seja capaz de conversar tranquilamente com a psicanálise?

Uma fé que respire o ar dos sonhos? Digo agora o que entendo por fé.

Já disse que, na experiência artística, fazemos amor com coisas que não existem. “As coisas que não existem são mais bonitas”: delas, a alma se alimenta. A própria existência da arte é uma evidência de que “as coisas que não existem têm o poder de nos socorrer”.

Quando, no meio de todos os sonhos que amamos, encontramos um sobre o qual lançamos a nossa vida, abandonando-nos a ele em virtude de sua beleza, sem nenhuma certeza, quando “apostamos” (Pascal, Kierkegaard) a nossa vida e nos lançamos no vazio do “não ser” – a esse ato eu dou o nome de fé. Ele nada tem a ver com a crença na existência de seres sobrenaturais. Não se trata de um suicídio intelectual pelo qual afirmamos a existência de algo que não pode ser testado. Trata-se de um ato de amor, de vontade e de coragem. Abandonando todas as certezas, por esse sonho eu arrisco a minha vida. Paul Tillich dava a esse gesto supremo de amor por um sonho o nome de ultimate concern – expressão que não sei traduzir, talvez “comprometimento último”. Como disse Miguel de Unamuno, católico convicto, no seu livro O sentimento trágico da vida (Porto: Educação Nacional, 1953, p. 145), “acreditar em Deus é, antes de mais nada e principalmente, querer que ele exista”. Ora, existe uma distância abissal entre afirmar “creio que Deus existe” e “desejo que Deus exista”.

Segundo Ernst Jones, “Freud disse de Nietzsche que ele tinha um conhecimento mais penetrante de si mesmo que qualquer outro homem que tenha existido ou que venha a existir” (Walter Kaufmann, Basic wrítings of Nietzsche. Nova York: The Modern Library, 1968, p. xi). Nietzsche tinha um profundo desprezo pelas religiões e pelosreligiosos. E, no entanto, ele  era um homem de fé. Acusando os cientistas de sua época que só reconheciam a realidade física, ele disse: “Vós sois estéreis; esta é a razão por que não tendes fé.

Mas quem quer que tenha criado teve seus sonhos proféticos e signos astrais – fé na fé”. Segundo o próprio Nietzsche, a louca firmação do eterno retorno de todas as coisas foi a mais alta forma de afirmação da vida que ele encontrou. Fato empírico? Não. Sonho. Esperança. Fé. Como Nietzsche, Freud desprezava as religiões e o pensamento religioso: ilusões, neurose. Por vezes, psicose. E, no entanto, como Nietzsche, ele tinha também a sua fé. Olhando para a vida, ele podia ver potências invisíveis, por detrás de tudo o que acontece. Dois deuses poderosos, Eros e Tânatos, Amor e Morte. Realidades? Não. Poesia, metáforas, sonhos. E olhando para esses dois deuses, ele orientou a sua vida. Apostou em Eros, a despeito da sombra de Tânatos que ameaçava a civilização. Todo o trabalho psicanalítico é, em última instância, um ato de fé, uma batalha para fazer com que o Amor triunfe sobre a Morte.

Garantias de um final feliz não há. A experiência clínica o comprova. A despeito disso, a fé brilha, invocando o socorro das coisas que não existem.

Rubem Alves

ovelha

Era uma vez um pastor que gostava muito de suas ovelhas. Gostava delas porque eram mansas e indefesas: não tinham garras, não tinham presas, não tinham chifres.

Eram incapazes de atacar e incapazes de se defender. Mansamente, elas se deixavam tosquiar. O pastor gostava tanto delas que prometeu defendê-las sempre de qualquer perigo. Como prova do seu amor, tornou-se vegetariano. Jamais mataria uma ovelha para comer. Como resultado de sua dieta de frutas e vegetais, o pastor era muito magro.

Havia, nas matas vizinhas, lobos que também gostavam das ovelhas. Gostavam delas porque eram mansas e indefesas: não tinham garras, não tinham presas, não tinham chifres. Eram incapazes de atacar e incapazes de se defender. Mansamente, se deixavam devorar. É: o gostar frequentemente produz resultados diferentes. O gostar do pastor produzia cobertores de lã. O gostar dos lobos produzia churrascos.

O pastor estava sempre atento para proteger suas ovelhas contra os ataques dos lobos. Levava um longo cajado nas mãos, para golpear os lobos atrevidos que chegavam perto, e arco e flechas para ferir os prudentes que ficavam longe.

Viviam, assim, pastor, ovelhas e lobos, num delicado equilíbrio.

A notícia das ovelhas chegou aos ouvidos de uns cães famintos e de umas hienas magras que moravam nas cercanias. Resolveram mudar-se para a floresta dos lobos para melhorar de vida. Parentes que eram, falavam a mesma língua e logo se entenderam. Organizaram-se, então, de forma racional, a fim de terem churrascos mais frequentes.

O cajado e as flechas do pastor se mostraram impotentes diante das novas táticas. Enquanto ele espantava os lobos que se aproximavam pelo sul, os cães e as hienas matavam as ovelhas que pastavam ao norte.

O pastor concluiu que providências urgentes tinham de ser tomadas para a segurança das ovelhas. Pensou: “Os lobos, os cães e as hienas atacam porque as ovelhas são indefesas. Se elas tiverem meios de se defender, eles não se atreverão. Preciso armar minhas ovelhas”. Mandou então fazer dentaduras com dentes afiados, chifres pontudos e garras de ferro, com que dotou suas mansas ovelhas. Os lobos e seus aliados, vendo as ovelhas assim armadas, riram-se da ingenuidade do pastor. O fato é que as ovelhas ficaram ainda mais indefesas do que eram, pois não sabiam usar as armas com que o pastor as dotara. Os churrascos ficaram ainda mais frequentes. com isso, lobos, hienas e cães engordaram.

O pastor teve, então, outra ideia: “vou contratar guardas de segurança profissionais para proteger minhas ovelhas”. Os guardas teriam de ser mais fortes do que cães, hienas e lobos. “Tigres” pensou o pastor. Mas logo teve medo. “Tigres são carnívoros. É possível que gostem de carne de ovelha.” Só se houvesse tigres vegetarianos.

Soube, então, que um criador de tigres, com o uso de técnicas psicológicas pavlovianas, havia conseguido transformar tigres carnívoros em tigres vegetarianos. Seus hábitos alimentares eram iguais aos das ovelhas. Nesse caso, não ofereciam perigo. O pastor, então, contratou os tigres vegetarianos como guardas de suas ovelhas. Os tigres, obedientes, começaram a guardar as ovelhas e diariamente recebiam, como pagamento, uma farta ração de abóboras, nabos e cenouras.

Os lobos, as hienas e os cães, vendo os tigres, ficaram com medo. Como medida de segurança, passaram a caçar as ovelhas durante a noite.

Os tigres, patrulhando a floresta, vez por outra encontravam os restos dos churrascos com que lobos, hienas e cães haviam se banqueteado. Sentiram, pela primeira vez, o cheiro delicioso de carne de ovelha. Lambendo os restos, sentiram pela primeira vez o gosto bom do seu sangue. E perceberam que carne de ovelha era muito mais gostosa que sua ração de abóboras, nabos e cenouras.

Pensaram então: “Melhor que ser empregados do pastor seria ser aliados dos lobos, das hienas e dos cães”. E foi o que aconteceu. Tigres, lobos, hienas e cães tornaram-se sócios.

Os lobos, as hienas e os cães tornaram-se atrevidos. Não atacavam mais durante a noite. Atacavam em pleno dia. Ouvindo os balidos das ovelhas, o pastor gritava pelos tigres. Mas eles não se mexiam. Faziam de conta que nada estava acontecendo. Mal sabia ele que os tigres, durante as noites, comiam churrasco com os lobos, as hienas e os cães. O pastor resolveu pôr ordem na casa. Chamou os tigres. Repreendeu-os. Ameaçou cortar sua ração, ameaçou despedi-los.

Foi então, em meio ao sermão do pastor, que os tigres começaram a se perguntar uns aos outros: “Qual será o gosto da carne de um pastor?”. E responderam: “É preciso experimentar!”. Dada essa resposta, o mais forte deles abriu uma boca enorme e emitiu um

Rugido horrendo, mostrando os dentes afiados. O pastor, olhando para a boca do tigre, viu então o que nunca imaginara ver: chumaços de lã entre os dentes do tigre.

Num relance, ele percebeu o destino que o aguardava: ser churrasco de tigre. E seu pensamento voou depressa. O pastor já notara que os lobos, as hienas, os cães e os tigres estavam gordos e felizes. Ele, vegetariano, defensor das ovelhas, estava cada vez mais magro. E assim, numa fração de segundo, ele compreendeu a realidade da vida. E, antes que o tigre o devorasse, ele propôs: “Façamos uma aliança…”.

E, desde esse dia, a fazenda, que se chamava “Ovelha Feliz”, passou a se chamar “Ovelha Saborosa”. E o pastor, os tigres, os lobos, as hienas e os cães viveram felizes pelo resto dos seus dias, cada vez mais gordos, as bocas sempre lambuzadas com gordura de ovelha.

Rubem Alves

Máscaras

 

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Tenho de confessar que o carnaval me cansa. O desfile das escolas de samba me causa um tédio sem fim. As plumas coloridas, as fantasias caras, o ritmo das baterias, o virtuosismo dos sambistas, o tremor das nádegas e seios nenhuma emoção me provocam a não ser o tédio. O que desfila no sambódromo é de uma mesmice chatíssima, que se repete a cada ano. Quem viu um viu todos.
Isso não se deve a nenhuma implicância minha com o carnaval. Eu até que gostaria de sentir entusiasmo. Pensei, então, que, quem sabe, um carnaval diferente… Quando eu era menino e estudava piano aprendi a tocar uma versão facilitada do Carnaval de Veneza. Fiquei sabendo, então, que em Veneza há um carnaval famoso. Mas nenhuma idéia eu tinha de como ele era, e ainda não tenho. Exceto que se trata de uma imensa orgia de máscaras. Veneza é uma cidade de máscaras que se vendem o ano inteiro, e eu mesmo comprei algumas.
As máscaras fascinaram Bachelard. Sobre elas escreveu um ensaio em que chama a nossa atenção para o fato de que, antes de existirem como objetos usados para esconder o rosto, as máscaras moram dentro de nós como entidades do nosso psiquismo. Todas as vezes que olhamos para um rosto e ele nos parece misterioso, lugar onde um segredo se esconde, estamos pressupondo que ele não é um rosto mas uma máscara, uma dissimulação.
Isso já é sabido de longa data. Está dito na palavra “pessoa”, que vem do latim persona, que quer dizer “máscara de teatro”. O teatro é algo que precisa de um público para existir. Sem um público ele não tem sentido. As personae, as máscaras de teatro, portanto, são usadas para um público. O público vai ao teatro para ver a “máscara”, a “representação” de um papel. Não lhe interessa o rosto verdadeiro por detrás da máscara. Esse rosto desconhecido é ignorado pelo público, não tem nome. São as máscaras que têm nome. O meu nome, Rubem Alves, não é o nome do meu eu verdadeiro. É o nome da máscara pela qual sou reconhecido pelo público. É o nome do papel que esse público pede que eu represente. A aplicação do nome persona, máscara de teatro, a nós mesmos, implica no reconhecimento implícito de que a vida é uma farsa, uma representação, um carnaval de Veneza.
Não somos nós que pintamos as nossas máscaras. Álvaro de Campos dizia que ele era o “intervalo” entre o seu desejo, o seu eu verdadeiro e aquilo que os desejos dos outros haviam feito dele, a máscara. Essa máscara que se chama pessoa e que é representada pelo meu nome é uma evidência de que eu não me pertenço. Pertenço ao público. Pela máscara torno-me um peixe apanhado nas malhas das redes do público. Pela máscara não sou meu. Sou deles. Aí eles me fritam do jeito que desejam.
Há um princípio da medicina homeopática que diz que o semelhante se cura pelo semelhante. Sugiro aos psicodramatistas que o carnaval de Veneza é uma terapia coletiva em que esse princípio homeopático é usado: máscaras se curam com máscaras. Máscaras de papel e tinta para nos libertar da tirania da máscara colada em nosso rosto. Ponho a máscara de papel e tinta sobre a máscara de carne e ninguém fica sabendo quem sou. Fico desconhecido, sem nome. Estou livre do público. Posso deixar que o meu eu verdadeiro saia.
Mas as máscaras de papel e tinta padecem de grave limitação. Chega sempre a hora em que elas têm de ser tiradas. Sobre isso se escreveu um conto, não me recordo o autor. Marido e mulher procuraram conventos onde ficar a salvo das tentações do carnaval. Representavam fielmente o papel que estava escrito nas máscaras coladas sobre os seus rostos. Mas dentro de suas malas os seus eus verdadeiros haviam colocado secretamente máscaras de papel e tinta: escondidos atrás delas eles seriam livres, pelo menos durante os curtos dias de carnaval. As despedidas de marido e mulher nem bem haviam terminado e já as mãos procuravam as máscaras. Adeus conventos! Três dias com máscaras de papel e tinta, três dias livres das imposições das máscaras de carne, três dias sem nome, três dias de liberdade. Marido e mulher, escondidos atrás das máscaras, descobriram parceiros maravilhosos com quem dançaram, brincaram e tiveram prazeres nunca tidos um com o outro. Mas, finalmente, a hora de se tirarem as máscaras. Meia-noite: tiradas as máscaras marido e mulher se descobrem um nos braços do outro…
Rubem Alves